Falta de Fé ou Sabedoria?
“Porque tive vergonha de pedir ao rei exército e cavaleiros para nos defenderem do inimigo no caminho, porque já lhe havíamos dito: ‘A mão do nosso Deus está sobre todos os que o buscam, para o bem deles; mas a sua força e a sua ira são contra todos os que o abandonam.’” – Esdras 8:22
A pandemia da Covid-19 veio de repente e pegou todos de surpresa. Os governantes não sabiam (e em parte ainda não sabem) como agir. No início, muitos diziam ser apenas uma “gripezinha”. Pois é! Ela já levou a óbito mais de 190 mil brasileiros.
Com a igreja não foi muito diferente. Houve reações de ambos os lados. Houve aquelas que logo que ouviram falar da pandemia deixaram de ter o culto presencial e algumas delas, ainda hoje, assim continuam. Outras, em nenhum momento deixaram de ter o culto presencial, mesmo no mais crítico da pandemia, e ainda há aqueles irmãos que rotulam outros como “irmãos de pouca fé” os que ainda insistem em ficar apenas nas reuniões on line. Como resposta, recebem o rótulo de inconsequentes, rebeldes às autoridades ou mesmo ignorantes, pois estariam negando a ciência. Na igreja onde congrego (Pimentas, Guarulhos/SP.), inicialmente não queríamos parar com os cultos presenciais, mas, ante o aumento no número de infectados, inclusive no meio da irmadade, de abril a agosto tivemos apenas os cultos pelo You Tube e reuniões pelo aplicativo zoom. Em setembro voltamos ao presencial no domingo, com tranmissão ao vivo pela internet.
O texto que abre este artigo chamou minha atenção para esta questão. O sacerdote Esdras tem uma missão perigosa na volta do povo de Deus do exílio. Porém, por ter dido ao rei que seria protegido por Deus teve vergonha de pedir ajuda do exército real.
Confesso que identifico-me com Esdras em sua relutância. Ele estava com medo do que poderia acontecer na viagem, por isso pensou em pedir ajuda do rei da Pérsia. Ao mesmo tempo, sua declaração de fé diante do rei, o fez não tomar essa atitude.
Viver por fé tem esses dilemas. De um lado, fé é exatamente confiar em Deus antes da ação dele (hebreus 11:1). Gosto de uma frase a respeito: “é pisar firme, sem saber se há chão, confiando que Deus o providenciará”. Lembro do rei Asa que “na sua enfermidade ele não recorreu ao Senhor, mas confiou nos médicos.” (2 Crônicas 16.12). Foi falta de fé mesmo.
Por outro lado, a fé não significa abrir mão de buscar socorro aqui na terra nos instrumentos que temos à nossa disposição. Jesus não pulou do pináculo do templo para provar sua fé em Deus Pai. Chamou isso de por Deus à prova (Mateus 4:7)
Voltando a falar na questão da pandeia e nos cultos, no começo dela, particularmente, eu era a favor de manter os cultos presenciais como uma demonstração de nossa fé em Deus, de que o Senhor nos protegeria. Por outro lado, a igreja é um corpo, submetido apenas a Jesus, com membros com experiências variáveis em sua fé. No primeiro final de semana pós anuncio da Covid, dos cerca de 50 irmãos que costumam estar presentes conosco, menos de 20 participaram naquele dia. Além disso, muitas pessoas, inclusive das igreja irmãs, começaram a ser diagnosticados com a doença e irmãos nossos vieram a óbito, como nosso irmão Luiz Amaral, da igreja na Metrô-Sul. E também a grande maioria das congregações na região passaram a ter reuniões somente on-line. Desta forma, no segundo domingo de abril passamos também a ter reuniões dessa maneira.
Hoje, quase 9 meses depois, olho a situação de uma maneira um pouco diferente. Eu, pessoalmente, teria continuado com os cultos presenciais (com os cuidados devidos, claro) sem qualquer problema. Apesar de não querer partir tão cedo, estou tão convicto de minha salvação e de que a vida após a morte é tão boa, que arriscaria, pois, caso partisse, estaria num bom lugar. Tenho o mesmo sentimento de Paulo, que estava dividido entre permanecer vive ou partir para a eternidade (Filipenses 1:23-24).
No entanto, a igreja é um corpo e especialmente nós que servimos como evangelistas ou nos casos em que a igreja tem seu presbitério, precisamos ter responsabilidade com os irmãos. Nem todos têm a mesma fé. Imagine um irmão que vem ao culto em função do pensamento de outro, contrai a doença, fica muito mal (como alguns dos nossos ficaram) ou mesmo vem a óbito. Nesses momentos a humanidade das pessoas aflora e, com certeza, os servos da igreja seriam acusados como culpados por aquela situação. Por outro lado, estar em casa não impediu que muitos irmãos da igrejas que deixaram de ter cultos presenciais contraissem a doença, pois precisavam trabalhar e ter contato com outros. Por que somente nos cultos todo mundo ficou em casa? Nesse sentido dou razão aos que defendem a permanência do culto presencial. Mas, gosto do que Paulo diz em Filipenses 3:16:
“Seja como for, andemos de acordo com o que já alcançamos.”
A fé é individual e cada discípulo de Jesus está numa fase e, mesmo que alguns deixem de participar por medo ou mesmo “falta de fé” (quem sou eu para julgar a fé do outro?), esses irmãos devem ser amados e respeitados no momento espiritual que vivem e não julgados, criticados ou, como alguns mais radicais fazem, ter seu compromisso com Deus colocado em dúvida.
Há ainda outra questão: a obediência às autoridades. Paulo nos ensina em Romanos 13:1-7 que devemos ser submissos às autoridades constituídas, desde que suas ordens não contrariem à vontade de Deus, conforme Pedro ensina em Atos 5:29. Em Guarulhos, no começo da pandemia, decreto da prefeitura municipal determinou que qualquer grupo que reunisse pessoas estaria sujeito à multa de R$ 10.000,00. Valeria apena desobedecer essa ordem somente para provar que temos fé e somos obedientes a Deus, quando não existia uma ordem para que não houvesse cultos? Durante semanas, antes de iniciarmos os cultos on-line, Pimentas teve seus cultos nos lares, cada família fazendo o seu. E isso o governo não nos proibiu. No primeiro século os cristãos não desafiavam as autoridades fazendo seus cultos ao ar livre, quando proibidos, mas escondidos em catacumbas. Desta maneira, dou graças a Deus pela tecnologia que nos permite ter nossas reuniões virtuais.
Para alguns irmãos, participar de cultos “on line” é falta de fé na proteção de Deus no momento do culto presencial. Para outros, quem está no culto presencial age de maneira inconsequente, colocando-se em risco. Precisamos entender que a fé é individual. De um lado, particularmente, temos participado de nossos cultos presenciais, cientes do risco do contágio, mas confiando em Deus. Porém, sem julgar os irmãos que estão nos cultos “on line”, pois somente Deus conhece os corações e as motivações de cada pessoa. Estamos juntos crescendo em nossa fé, cada um no seu estágio e respeitando os limites, a falta de fé ou de sabedoria que às vezes demonstramos uns para os outros. Não é muito sábio também colocar-se em riscos desnecessários.
A fé demostrada por Esdras foi honrada por Deus. Ele e seus companheiros foram protegidos pela boa mão do Todo-Poderoso. O mesmo podemos dizer de Daniel que arriscou desobedecer ao rei da Babilônia, para não comer o que a lei de Moisés proibia e sua fé foi horada (Daniel 1:8-10).
Sim, a fé em Deus demonstrada por Esdras nos motiva a “arriscarmos” em confiar em nosso Deus. Ao mesmo tempo, a relutância e vergonha dele faz a maioria de nós nos identificar com ele em nossos momentos de altos e baixos. Nenhum de nós é um super servo de Deus, somos todos limitados e necessitados da mão terna, da paciência e do amor do Senhor. Claro que nesta questão há atitudes incoerentes: há irmãos que dizem não ir aos cultos por medo da pandemia, mas postam nas redes sociais suas fotos na praia, nos shoppings, até mesmo em reuniões de lazer. Há outros que não estão presentes nem nos cultos presenciais nem on line. Estes demonstram onde estãos suas prioridades.
Entramos em 2021. Pimentas pretende voltar com todos os cultos presenciais, algo permitido pela prefeitura local, mantendo apenas o culto dominical também on line. Porém, sem medo de, caso necessário e decretado pelo governo, voltar com as reuniões somente pela internet. E, de qualquer forma, compreendendo e respeitando a fé (ou falta dela) de cada um, pois somente Deus tem elementos para medir com precisão o grau de nossa fé. Deixemos, pois, com ele esta questão.
“Você, porém, por que julga o seu irmão? E você, por que despreza o seu irmão? Pois todos temos de comparecer diante do tribunal de Deus.”, Romanos 14.10